O Rito do Ódio

Cyberhermit
7 min readMar 29, 2021
  • João, que roupa é essa? Que cores são essas? Não são as que usamos! Se não me engano, são até mesmo proibidas!
  • Alberto, do que está falando? Estou usando a roupa de sempre. Minha camisa cinza e minhas calças jeans.
  • Não, não! Você sabe muito bem que só é permitido o uso de azul e vermelho, e, nesse distrito em específico, vermelho! Se alguém ver você usando azul, você certamente será linchado, na melhor das hipóteses!
  • Alberto, que loucura é essa? Não faço ideia do que você está falando! Por acaso você voltou a beber? Está tomando algum remédio pra depressão?
  • Claro que não, João! Você sabe que álcool é proibido. Quanto aos remédios, todos nós temos nossa ração diária de benzodiazepínicos como tratamento preventivo para quem não tem ansiedade ou depressão … enfim, não sei porque estou lhe explicando tudo isso, estamos vivendo assim já fazem décadas. Chega de papo furado e vá vestir uma roupa adequada antes que você arranje problemas para nós! Olhe, há um fiscal vindo!
  • Ok, ok! Meu apartamento é logo ali. Me espere um instante para podermos ir ao trabalho. Ainda fazemos isso, certo?
  • Claro João! Mas antes devemos nos preparar para o Rito de Ódio.

Aquela manhã estava estranha demais para João. Acordou, escovou os dentes, tomou banho, vestiu-se para o trabalho, fez tudo como sempre fazia desde que arranjou um emprego nos últimos anos. No entanto, essa manhã, quando colocou o pé fora de casa, tudo parecia diferente. Era como se tivesse sido transportado para um universo paralelo do dia para a noite. Já estava meio atrasado para o trabalho enquanto procurava a tal camisa vermelha, e no fim das contas achou uma no fundo do guarda-roupa. Fez tudo com pressa, o que não lhe deixou muito tempo de sobra para raciocinar sobre o que estava acontecendo. Saiu de seu apartamento e foi de encontro ao seu colega de trabalho, Alberto.

  • Agora sim, muito melhor! Devemos nos dirigir imediatamente para a divisa do distrito onde ocorre o Rito de Ódio. Estamos atrasados.
  • Claro, vamos!

João não fazia ideia do que seria o tal “Rito do Ódio”. Resolveu fingir que sabia do que se tratava para não arranjar problemas. No entanto, ele lembrava de ter lido algo com nome similar em um livro chamado “1984" de George Orwell, escrito em 1948. Chamava-se “dois minutos de ódio”, no qual era exposta uma imagem do adversário político do ditador que governava aquela distopia. Em seguida, as pessoas presentes direcionavam todo o seu ódio contido para aquele sujeito, vociferando as piores atrocidades possíveis.

  • Veja! Estamos próximos da divisa do distrito. Já se vê a imensa grade eletrizada e o exército fazendo a guarda.

João pensou: “mas que raios! Isso não existia antes. As pessoas podiam ir e vir nesta via. Onde estão os carros? Será que construíram essa rede eletrizada do dia pra noite?”

  • Argh! Aqueles vermes vestidos de azul estão se aproximando. Se prepare para despejar todo o seu ódio contra eles. É por causa deles que a vida piorou.
  • Por quê? O que eles fizeram?
  • Você não se lembra? Você está bem por acaso? Tomou seus remédios hoje? Seu comportamento está muito estranho. Enfim, vou refrescar sua memoria. Tudo começou quando eles resolveram eleger um administrador com certas ideias … polêmicas, pra dizer o mínimo. Uma série de decisões equivocadas, crise econômica e sanitária, enfim, o caos que ele gerou requeriu uma intervenção direta dos seus opositores.
  • E qual foi essa intervenção?
  • Terrorismo. A oposição sequestrou e matou administradores de alto escalão. Isso os deixou enfurecidos, fazendo com que declarassem guerra contra a oposição. O resultado foi uma guerra civil que durou décadas.
  • Ah sim, agora me lembro!! Realmente foi horrível.
  • Horrível? Foi devastador. Um caos social absoluto. Demoramos alguns anos para nos reerguer depois disso. Ainda bem que a liderança que surgiu logo depois obteve uma solução para a forma como nossa sociedade é organizada.
  • Qual foi mesmo essa solução? Me desculpe, acho que o stress do trabalho está me deixando meio lento hoje …
  • Acho que você vai se sentir melhor depois do Rito do Ódio. Enfim, a sociedade foi dividida em duas castas separadas, sem comunicação entre si exceto durante o Rito do Ódio. O território que tínhamos foi dividido entre os partidários e oposição, com a proibição da presença de um e do outro no território inimigo. No entanto, apesar dessa divisão, a administração do território é única. Temos um líder verdadeiro, com pulso de ferro, que foi capaz de conciliar ambos os lados usando uma série de estratégias. Além da separação econômica, uma delas é o Rito do Ódio. Prepare-se, pois já vai começar!

Multidões de pessoas aglomeravam-se de ambos os lados da grade eletrificada, que devia ter em torno de cinco metros de altura, em cada lado com alto falantes nas pontas. Do lado esquerdo, as pessoas vestiam vermelho. Do lado direito, azul. Já se ouviam insultos de ambos os lados e, o que no início eram apenas esbravejamentos, logo se transformou em urros e gritos. Na área livre entre as duas grades, onde um exército fazia a guarda, dois homens eram trazidos em cadeiras de rodas, amordaçados e algemados. Um vestia vermelho, e o outro azul.

Escutou-se do alto falante:

  • Bom dia cidadãos! Como é costume, estamos prestes a iniciar nosso Rito do Ódio semanal! Dois criminosos, um vermelho e outro azul, serão torturados livremente por vocês! Após a diversão, o cidadão com o maior número de créditos sociais de cada distrito terá a honra de dar o tiro de misericórdia, assim como de iniciar a tortura. Nossa Guarda Distrital acompanhará todo o processo para que vocês tenham toda a devida segurança! Em seguida o capitão da guarda dará maiores detalhes acerca dos procedimentos. Pelo sorteio de hoje, iniciaremos o Rito com os vermelhos!

“Isto é completamente insano”, pensou João. “Por mais que estas pessoas sejam criminosas, este espetáculo é absurdamente doentio e sádico! Me pergunto como foi possível que o ódio pela diferença tomasse tais proporções? Afinal, que sociedade é essa? Como vim parar aqui?”

  • Uma pergunta Alberto, você sabe como estes criminosos são escolhidos para tortura?
  • Pelo que sei, são sempre os que ocupam os últimos lugares do crédito social. Estes estão nos primeiros lugares da fila para a execução.
  • O que é esse crédito social mesmo? Me esqueci como funciona …
  • Acho que você sempre foi mesmo meio cabeça de vento mesmo. Enfim, crédito social mede a sua relevância pra sociedade. Se você trabalha e gera renda, você obtém crédito social, por exemplo. Mas se você critica a administração, é pego em algum ato ilícito, você perde créditos sociais até que chega um ponto que você entra pra fila de execução. Nós somos observamos diariamente e, conforme nosso desempenho diário, ganhamos ou perdemos pontos. Inclusive, se nossa performance no Rito de Ódio é ruim, nós perdemos muitos pontos.

“É pior do que eu pensava! Estas pessoas são vigiadas diariamente e são punidas se criticam a administração de seu distrito! Muito provavelmente estes tais criminosos não fizeram nada de muito tenebroso que justifique as atrocidades que estão prestes a sofrer. Eu preciso descobrir logo como vim parar aqui ou o que aconteceu comigo e com esse mundo!”

“Atenção todos!”, disse o capitão da guarda após estabelecer os procedimentos. “Uma salva de palmas para o camarada do seu distrito com maior número de créditos desta semana!”

Ouviu-se em uníssono uma salva de palmas dos vermelhos, enquanto os azuis vaiavam a apresentação do cidadão exemplar da semana. O prisioneiro azul que aguardava o início da tortura pelos vermelhos não expressou reação alguma.

“Obrigado a todos! É uma honra poder dar início a este ritual que já é uma tradição entre nós”, disse o escolhido da semana. “Nada mais adequado para este pária da nossa sociedade maravilhosa do que iniciar a tortura cortando a sua mão direita”, disse, escolhendo um instrumento apropriado em meio a um grande arsenal de ferramentas de tortura. “Já sei! Utilizarei uma serra manual para cortar sua mão.”

João não aguentou a cena com que se deparou e vomitou no chão. Um dos supervisores do Rito do Ódio reparou, além de ter sido visto pelas câmeras.

  • Que merda é essa João? Está louco? Ou você comeu comida estragada de novo esta manhã? Você vai perder créditos assim!
  • Argh … isso tudo … é demais pra mim … não consigo olhar.
  • O que há com você? Ora, você sabe que é delito grave se recusar à assistir a tortura! Os supervisores certamente o levarão para detenção!

Mal Alberto terminara de alertar João, um supervisor se aproximou e imobilizou João no chão, algemando-o e golpeado-o de maneira que ficasse inconsciente.

  • Verificamos que já faz um tempo que o senhor não toma suas medicações. O senhor consegue nos fornecer uma boa explicação pra isso?
  • Medicações? Que medicações? Não sei do que vocês estão falando!
  • O senhor sabe muito bem. Creio que uma dose mais intensa de dor lhe refresque a memória.

Enquanto João era torturado, entrou na sala um dos médicos psiquiátricos responsáveis pelo centro de detenção e começou a observá-lo atentamente. Realizou algumas anotações em sua prancheta e voltou para a ala médica, onde outros médicos estavam reunidos.

  • Interessante, parece que temos outro espécime que “acordou”.
  • “Acordou”? Como assim? Use termos mais científicos!
  • “Acordou”, saiu do estado de histeria coletiva em que se encontrava. E, ao que tudo indica, de forma inconsciente. Involuntariamente, parou de tomar seus remédios, e retomou completamente sua lucidez, a ponto de achar que se encontrava em um universo paralelo.
  • Se isso se tornar epidêmico teremos um grande problema, pois não conseguiremos manter o estado histérico da sociedade e perderemos toda estabilidade que lutamos muito para alcançar e criar esse admirável mundo novo.
  • Acho que você não deve se preocupar tanto … por enquanto. A alta cúpula vai bolar alguma estratégia melhor para lidar com isso. Por ora, continuaremos os lobotomizando e encaminhando para o Rito do Ódio.

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Cyberhermit

Software developer, former civil engineer. Musician. Free-thinker.